sábado, 10 de julho de 2010

Dia da Pizza: é hoje!



A pizza é hoje para os italianos algo como o Coliseu, como Michelangelo ou como as notas de “O’ Sole Mio”. Ao lado da Coca-Cola, são ícones do século XX que vão se perpetuando, mas sua origem é ainda desconhecida. Cada um de seus principais ingredientes está intimamente ligado a um fato da história italiana. Segundo uma versão clássica, uma bisavó da atual pizza, uma simples massa feita de farinha, água, fermento e sal, nasceu como uma fogazza (focaccia) nas cozinhas romanas, e servia de prato para receber as iguarias durante as refeições.

A história quer como autor desse alimento o romano Marco Gavio Apicio, famoso pelo livro de receitas De Re Coquinaria. A focaccia foi chamada de apicia, da qual se supõe veio a pizza. Mas o Dicionário Etimológico Italiano diz que o termo pizza deriva do gótico-lombardo, antigo alemão, Bizzo ou Pizzo, traduzido como pedaço, pedaço de pão, focaccia. Os egípcios foram os responsáveis pelos processos de fermentação e pela invenção do forno, e essas informações são indiscutíveis. Porém, os pães e ou focaccias que preparavam eram exclusivamente para uso em rituais.

Os gregos também eram grandes fabricantes de pães e sem dúvida tal tradição foi absorvida pelos romanos, junto da filosofia e do gosto pelas artes. Sem dar crédito às fantásticas hipóteses sobre sua origem, a pizza é um alimento típico das culturas que se desenvolveram ao longo do Mediterrâneo. E é em uma das “rainhas do Mediterrâneo”, a cidade de Napoli, que ela encontrará sua pátria e o ponto de partida para a conquista do mundo. Porém, foi preciso que Napoli esperasse a descoberta da América, em 1492, para que o ingrediente mais importante desse alimento fosse a ele incorporado: o tomate.
Um artista do fogão

Conta-se que, na primeira metade do século XVIII, o cozinheiro da corte dos reis de Bourbon, na capital do Reino de Napoli e das Duas Sicílias (a Sardenha era considerada outra Sicília), um tal Totó Sapore, um verdadeiro artista do fogão e muito mimado pelo rei, seria o criador dessa maravilha. Um dia, um invejoso da corte colocou um fio de cabelo no magnífico assado que Totó havia preparado para o jantar real. E o pobre cozinheiro, mesmo inocente, foi para a prisão.

No cativeiro o artista inconformado arquitetou um plano para que fosse libertado: escreveu um bilhete ao soberano pedindo a liberdade em troca de uma nova iguaria que lhe prepararia. E a tal iguaria possuía as seguintes características: “Deve ser cozida em menos tempo que o macarrão, não será nem primeiro e nem segundo prato, nem carne e nem peixe; será quente como o inferno e deliciosa como o paraíso; redonda como o mundo e cheia de fogo como o sol de verão. Majestade”, concluía Tató Sapore em sua carta, “se serei capaz de criar um prato assim, sem dúvida serei merecedor da liberdade”.

O soberano instigado em sua gula aceitou a proposta e logo após a saída de Totó da prisão chegava à sua mesa o novo prato. Quando o rei experimentou a massa macia e crocante ao mesmo tempo, dourada e perfumada pelo vermelho do tomate, o engenhoso cozinheiro foi libertado definitivamente com uma condição: que preparasse aquela delícia todos os dias para a família real inteira.

À moda de Napoli - e de Sophia Loren

Até aqui a lenda, e como é sabido, o molho de tomates (pummarola em napolitano) ainda não havia sido inventado. O que se sabe por documentos escritos, é que a pizza fez sua primeira aparição nos palácios burbônicos de Napoli em 1762. Era um manjar comum entre o populacho e consumido em grandes quantidades por custar pouco e porque se podia comer sem prato, de pé na calçada, simplesmente dobrando-o em quatro partes, ou “a libretto” como se diz em Napoli (aliás, é assim que recomenda a napolitaníssima Sophia Loren!).

É documentado também que o rei Ferdinando I, que governou Napoli entre 1759 e 1825, um dia entrou na pizzaria de Antonio Testa, vulgo ’Ntuono e pediu para experimentar a comida plebéia em suas diversas variantes. Ficou tão entusiasmado que mandou inseri-la na corte. Mas a verdadeira ascensão da pizza ao trono de Napoli foi com seu sucessor, Ferdinando II, que, em 1832, mandou construir fornos para pizzas ao lado dos famosos fornos para a queima da Real Porcelana de Capodimonte, fábrica secular fundada pelos Habsburgo.

Foi somente durante o verão de 1889 que o último ingrediente da pizza veio a completá-la: o rei Umberto I e a rainha Margherita estavam hospedados no Palácio de Capodimonte. Foi chamado o pizzaiolo mais conhecido da cidade, Raffaele Esposito, que, em honra dos reis, acrescentou a mussarela à pizza para que, junto ao vermelho do tomate e ao verde do manjericão, lhes fizesse recordar a bandeira italiana: verde, branco e vermelho.
Imortalizado nos livros

O prato tradicional napolitano foi imortalizado pela literatura, principalmente, nas páginas dos romances da escritora e jornalista Matilde Serao (Patras 1856, Napoli 1927). Ela retratou o homem napolitano em seus mais diversos aspectos, pintando um grande quadro da vida urbana, e nos legou importantes documentos sobre o modo de se alimentar de sua população. No romance O País da Cocanha (Il Paese di Cuccagna – 1890), Serao narra as peripécias e cambalachos que os napolitanos, ricos e pobres, viciados no jogo de loto faziam para sobreviver e continuar jogando. Era uma mania, que levava famílias inteiras à ruína econômica e moral. A Cocanha é um país imaginário e teve a origem na picardia francesa na Idade Média. Sua abundância representava um incansável desejo de comer até a saciedade numa oferta ilimitada de iguarias e bebidas.

Nessa terra o rio é de vinho, a chuva é de pudins, comem-se muita cerne e muitos peixes de grande valor comercial. Não existe água e não existe pão; nem especiarias, nem sopa, nem vegetais. Não se cozinha na Cocanha, pois é um mundo sem instrumentos e sem utensílios. O pão também não existe, já que o trabalho de moagem não existe e os alimentos, já cozidos, caem diretamente na boca dos habitantes, sem que eles trabalhem para se sustentar. Era esse o sonho de todo napolitano pobre. Não precisar mais trabalhar e ter a mesa repleta de comida decente.

O Carnaval era sinônimo de abundância, de retorno ao sonho da Cocanha. E os dias de Carnaval assim foram imortalizados por Matilde: os célebres três pizzaiolos napolitanos, do Vico Freddo e Chiaia, do Largo Carità e de Port’Alba recomendavam ao público amante das pizzas, aquela dupla pizza que se chama calzone e aquela fritura que faz fios que tem o nome de filoscio, sem se esquecer das costeletas à pizzaiola, que eles estariam abertos até a manhã servindo vinho de Merano e dos Montes de Procida.

Aquilo que se come

Em outro livro, a jornalista e escritora Serao faz um retrato dos hábitos alimentares, das crendices, das manias e das paixões do povo napolitano após a grande epidemia de cólera de 1884 em resposta ao parlamentar Depretis que visitou a cidade e pronunciou a epigráfica frase “Bisogna sventrare Napoli” (É Preciso Sanear Napoli). O livro chamou-se então O Ventre de Napoli e foi publicado pela primeira vez em capítulos no jornal romano Capitan Fracassa, a partir do número 258, de 17 de setembro de 1884. Um dos ensaios, intitulado “Aquilo Que Comem”, elucida as tradições culinárias da cidade e como se alimentam – como o próprio título sugere – os moradores da metrópole do Sul, que, na época, contava com uma população de meio milhão de habitantes. E a pizza novamente é protagonista.

Protagonista e definida como uma criação napolitana por excelência: um dia, um industrial napolitano teve uma idéia. Sabendo que a pizza é uma das adorações culinárias napolitanas, sabendo que a colônia napolitana em Roma era grande, pensou em abrir uma pizzaria em Roma. O cobre das caçarolas e dos discos brilhavam, o forno ardia sempre; encontravam-se todas as pizzas: pizza com tomate, pizza com mussarela e queijo, pizza com alice e óleo, pizza com óleo, orégano e alho.

Nos primeiros tempos a multidão corria até lá; depois foi diminuindo. A pizza, tirada de seu ambiente napolitano, parecia uma distorção e representava uma indigestão; sua estrela empalideceu e caiu em Roma; planta exótica, morreu na solenidade romana. Mais adiante ela reitera a idéia da pizza como manjar dos pobres dizendo que a pizza entra na larga categoria dos comestíveis que custam um centésimo, e da qual é composto o café-da-manhã ou o almoço de grande parte do povo napolitano.

O mestre pizzaiolo

A figura do pizzaiolo também foi analisada por ela com riqueza de detalhes: o pizzaiolo que tem sua loja, à noite, faz um grande número de pizzas, feitas de uma pasta densa, que se queima mas não cozinha, cheias de tomates quase crus, de alho, de pimenta, de orégano: essas pizzas em tantas espécies de um centésimo são entregues a um moleque que as vai vender em alguma esquina de rua, sobre uma bancada ambulante e ali permanece quase todo o dia, com esse número de pizzas que gelam ao frio, que amarelecem ao sol, comidas pelas moscas.
Há também fatias de dois centésimos para as crianças que vão à escola; quando a provisão se acaba, o pizzaiolo a repõe, até o fim do dia. Há também, durante a noite, alguns moleques que carregam na cabeça um grande escudo convexo de estanho, dentro do qual estão essas fatias de pizza, giram pelas vielas e dão um grito especial, dizendo que têm pizza com tomate e com alho, com mussarela e com alice salgado. As pobres mulheres sentadas nas escadarias dos cortiços as compram e jantam, isto é, almoçam com esse centésimo de pizza.

Outro escritor napolitano a imortalizar a pizza foi Giuseppe Marotta, autor de San Gennaro non Dice mai No, uma descrição de seu retorno a Napoli, em 1947, após o término da Segunda Guerra. Napoli foi destruída física e moralmente pelas tropas alemãs, mas o espírito alegre, bonachão e apreciador da boa mesa não foi cancelado pela crueldade estrangeira. Marotta num diálogo com o autor de canções napolitanas, Giuseppe Rossetti, outro apaixonado pela cidade e por suas tradições, decanta as qualidades da pizza e escolhe como cenário a tradicional pizzaria do Largo da Carità: Ah! A pizza.

Doce e amargo

É doce, é amarga, é longa, é breve, é antiga, é nova, é segura, é imprevisível, é pão, é recheio, é superlativamente boa: é a pizza. Gosto desse alimento dos pobres, comovente e cheio de símbolos como a hóstia. De farinha, de água, de banha, de tomate, de mussarela e de calor se compõe a pizza: atenta não somente ao calor do forno que a enruga com leves queimaduras, mas também ao calor humano dos dedos de quem as prepara.

O pizzaiolo atrás do balcão, com qual arte e com qual amor achata e abre o cubo de massa: são pequenos golpes, ora grandes e suaves, ora fortes e penetrantes, das pequenas e inteligentes mãos como aquelas dos obstetras; a seguir, a cândida plataforma está pronta para receber os temperos: o pizzaiolo a belisca com banha, espalha por sobre ela os triangulozinhos de mussarela e uma pitada de queijo, derrama um pouco de molho e diz: “Vamos com a pá; pronto, vamos”. Transcorridos alguns minutos. A pizza finalmente nasceu.

E se a identidade de um povo pode ser construída por diversos elementos, também o alimento pode ser considerado um deles. E de extrema importância, pois talvez nenhum outro povo se preocupe tanto com o fator alimentar como os italianos. Considero impossível dissociar qualquer realização do homem italiano de atos e/ou atitudes ligadas ao culto da boa mesa ou do simples (seria mesmo tão simples assim?) ato de comer. A literatura é, sim, uma grande fonte de pesquisa para se entender essa nuance da vida humana, e mais do que nos livros de receitas e manuais de cozinha, podemos encontrar nos escritos de caráter vernáculo, importantes informações que não estão presentes na literatura especializada do setor.

Fotos de Tadeu Brunelli publicadas na Revista Prazeres da Mesa

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